A Flor da Tela

A Flor da Tela e a Polifonia artística de Fernando Campos

Para mim, a tela é o palco onde se encenam espetáculos. Com personagens de vários pintores, crio esquetes teatrais, cenas de filme.

Fernando Campos

Existem artistas em que não há separação entre a necessidade se expressar pictoricamente, pensar e viver. É o caso do pintor Fernando Campos. Sua primeira participação com o grupo Cinema de Poesia foi um convite para interpretar o pintor Van Gogh em um curta-metragem. Além de forte semelhança física, sua obra e vida estão ligadas a várias coincidências que o unem ao pintor holandês. No entanto, ao conhecer o processo de criação e a sólida trajetória artística de Fernando Campos, pode-se perceber uma obra repleta de polifonia, com referências a diversas artes. Ele realiza na pintura a mesma pesquisa que o grupo Cinema de Poesia realiza através das lentes cinematográficas, ou seja, a polifonia artística.


Desse encontro de linguagens entre o cinema e a pintura meta-artística, surge o delicado trabalho A Flor da Tela que, indo além de uma ilustração da obra do pintor, procura demonstrar seu processo de criação e o conceito de sua arte. Portanto, antes de entrarmos na discussão do trabalho audiovisual, é necessário conhecer como a polifonia se manifesta intensamente em sua trajetória.

Fernando Campos frequentou o curso de pintura da Escola de Belas Artes da Universidade Federal Rio de Janeiro entre os anos de 1982 e 1985.  Em 1984 realizou sua primeira mostra individual na Câmara Municipal de Muriaé. Nesse ano também participou da Mostra Coletiva TELEARTE, no Salão de Artes da TELERJ.

Após  diversas mostras, realizou, em 1988, a exposição individual “International Bazaar”, no Empire State Plaza, “Things of Beauty”, na Art Gallery, e uma mostra coletiva no Art Institute, todas na cidade de Nova York. No ano seguinte, participou de uma mostra coletiva na Flórida, Estados Unidos. Em 1990, realizou a exposição individual Van Gogh em mim, em Viçosa, e participou da coletiva Olhar Van Gogh, em Muriaé.


Fernando Campos dialoga com a obra e a estética do pintor holandês. Sua obra tem referências e citações à obra de Van Gogh. Dialoga também com autores de diferentes épocas, como Ensor, Egon Schiele, Tolouse Lautrec, Frida Kahlo e Gustave Klint.

Lautrec, Rembrandt, Vermee, Klint ou Manet coabitam espaços e possibilitam uma nova leitura de temas clássicos, como o nascimento da Vênus ou apenas um desenlace amoroso. Os personagens, extraídos de um romance, de um filme ou mesmo de um outro quadro, se tornam atores de um novo show, onde a tela se transforma em palco, para que o pintor possa apresentar seu próprio repertório e, por extensão, espetáculo.

Podemos perceber esse processo analisando o quadro abaixo, de Klint, chamado O Beijo Roubado, mesmo nome da segunda obra realizada por Fernando Campos. Percebe-se, pelo figurino, a citação aos girassóis de Van Gogh e na ação dos personagens, na atuação, a citação à obra de Klint. Percebe-se forte diálogo entre pintores.

Esquerda (quadro de Klint) Direita (quadro de Fernando Campos)

Fernando Campos realiza, em toda sua trajetória, um intenso diálogo com a história da arte e, principalmente, com a pintura. A obra acima pertence à sua mostra Petit, uma releitura das obras de Frida Khalo e Van Gogh, apresentada nas cidades do Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Klint e Van Gogh são dois artistas essenciais para o diálogo intertextual praticado por Fernando na pintura.

Outro exemplo desse diálogo pode ser visualizado abaixo. O primeiro é um autorretrato de Ensor, com suas famosas máscaras, o terceiro é um dos girassóis de Van Gogh e o quadro do meio é a tela Sobre as máscaras de Ensor : Girassóis para Vincent, de Fernando Campos.

Influências no trabalho de Fernando Campos

É interessante o modo fragmentado como se tece a polifonia, ora pelo figurino, ora pelo ambiente, por objetos de cena ou pela ação dos atores em seu quadro. No beijo dos personagens, encontramos a citação do trabalho O Beijo, de Chagal, em que o personagem flutua e rouba um beijo da amada. Esta é a razão do trabalho ao artista Fernando Campos se chamar beijo roubado.  Uma referência direta a obra de Chagal, ao mesmo tempo que rouba o próprio beijo retratado por um outro pintor. Ou seria o próprio Van Gogh? No lado externo, percebe-se a Noite Estrelada, quadro do pintor holandês, famoso por suas pinceladas fortes. Podemos dizer então que os personagens de Chagal habitam o mundo da noite estrelada. Pela polifonia alcança-se maior expressividade poética, o que permite várias possibilidades de leitura, uma disnarrativa, auxiliando a abertura da obra.

Quadros de Fernando Campos


A poesia esteve presente em sua pesquisa durante os anos de 1992 e 1993, quando realizou duas séries: Em Busca da Poesia I e II. Estudando a obra de José Saramago, compôs  Segundo Saramago, partindo da obra literária para a criação dos seus quadros. Os trabalhos As vontades de Blimunda e Caligrafia e Pintura são exemplos dessa fase.

As vontades de Blimunda ----------------- Caligrafia e Pintura

Em 1995, a pesquisa de Fernando Campos parte da junção das instalações, do figurino, do mundo religioso e fantástico, como podemos observar no quadro da série Margarida Rosa, abaixo no lado direito. Na direita um quadro de autor desconhecido, ilustrando uma outra forma de retratar Nossa senhora. Fernando utiliza  processo de citação de outras obras, para recriar em seus quadros personagens já existentes em obras passadas. A sua tela é um palco onde habitam referências as artes passadas, abarcando desde a mitologia grega, ao renascimento e outras épocas da história da pintura.

A esquerda um quadro da Nossa senhora, a direita o quadro Maria de Jesus, de Fernando Campos

Em 2001 a pesquisa parte da música em direção à tela. Surge a série Trilhas Sonoras, na qual quadros são criados a partir de músicas. Dessa fase podemos citar os quadros The Shadow of your Smile  e  Dancing in the Dark.

The Shadow of your Smile e Dancing in the Dark.


A partir das artes, Fernando Campos realiza uma cartografia de sentidos, sensações, baseada na sensibilidade de descobertas no olhar de cada quadro. Há uma linha de pesquisa que ordena toda a sua criação nos mínimos detalhes. Na série Trilhas sonoras, percebemos, ao fundo, o papel de diversas cartas, letras, poemas, repleto também de força teatral, cênica.

Com a evolução da pesquisa, em pouco tempo os pintores passam a atuar em seus quadros. No mundo de Van Gogh, seja em sua cama no quarto seja no bilhar em Arles, observamos a pintora Frida Khalo. A própria pintura do holandês é transformada em cenário, enquanto Frida Khalo descansa sobre a cama. Cena esta comum na biografia da pintora, que sofreu um grave acidente e passou muito tempo sobre o leito, motivo que a levou a se dedicar à pintura.

Quadros com referências a Frida Kahlo e Van Gogh

Devido à força cênica presente nos quadros do artista plástico, os próprios pintores são atores, contando a narrativa de seus quadros ou de suas vidas.


A série Petit ilustra perfeitamente essa situação. As personagens da história da arte interpretam possíveis narrativas em seus quadros. Fernando retira elementos do cinema, da música, da literatura, da dança, da escultura e do teatro, potencializando a expressividade poética de sua obra.

Na exposição Senza Fine, realizada no sobrado Ramalho, em Tiradentes, apresentou releituras de Rodin e Klint, em janeiro de 2005. Em agosto de 2006, voltou ao sobrado com a exposição “História da Arte”, dialogando com escultores, poeta, pintores e músicos. O quadro abaixo, Stardust, teve origem no processo de criação da música Stardust, além de tecer uma referência ao filme Moulin Rouge. Abaixo, o cartaz do filme e a tela do pintor:

Cartaz do FIlme Moulin Rouge e o quadro Stardust

O trabalho do pintor Fernando Campos possui uma forte identificação com a pesquisa  proposta pelo grupo Cinema de Poesia. Assim, para a compreensão do trabalho A Flor da Tela, foi necessário demonstrar a prática polifônica do pintor. Desse modo a pintura de Fernando Campos é um palco onde diversas artes se encontram, próxima à noção do grupo do Cinema de Poesia, em que o cinema transforma a tela em um palco, reunindo todas as artes.

As sobreposições de camadas no curta-metragem A Flor da Tela ilustram o forte conceito de polifonia desenvolvido pelo Pintor, o seu processo de criação e sua estética. Retoma-se o mesmo processo iniciado em Três tons sobre o poema de um pintor, cujo objetivo era transpor para a tela do cinema não só a obra, mas o conceito da arte desenvolvido pelo artista representado. Vamos entender como foi realizado o transplante do conceito de arte do pintor para a linguagem audiovisual.

A primeira sequência do curta-metragem A Flor da Tela apresenta o Ateliê do artista. Um plano-sequência de 52 segundos mostra o ambiente onde os quadros são produzidos. Percebem-se a caligrafia da câmera e sua movimentação de dança mostrando as paredes pintadas, o cavalete, as tintas preparadas para o ofício de criar imagens.

Imagens do curta-metragem A Flor da Tela

Após essa abertura, mostra-se o artista em seu ambiente de estudo. O dialogismo é tecido a partir de um livro de fotografias do escultor Rodin, forte referência artística em seu trabalho.

Processo de criação de Fernando Campos

Da mesma forma que Fernando utiliza imagens de outros pintores para o seu trabalho, o curta-metragem A Flor da Tela utiliza as imagens criadas dos quadros de Fernando. Os personagens em sua pintura são animados pela imagem em movimento. Uma homenagem ao cinema  em  sua  obra  é  interpretada  pelo ator e poeta Rômulo Pacheco. Vemos parte da tela Stardust projetada, tecendo, com a luz do projetor, uma citação ao filme Moulin Rouge, inspiração imagética para o quadro de Fernando e para o quadro cinematográfico.

Imagens do curta-metragem A Flor da Tela

Fernando Campos atua no curta-metragem. Se, em sua obra, ele personifica os pintores e os coloca em sua tela, nada mais justo do que colocar Fernando Campos, um pintor também, dentro da tela do curta A Flor da Tela. Geralmente suas pinturas possuem uma divisão. Dentro do palco de tinta criado por ele, contracena com sua própria obra. Ao final, depois de conhecer o ateliê de criação, o método de estudo, as relações entre artes e pintura, o trabalho encerra com o ato da pintura do artista.

A obra e o artista

O filme A Flor da Tela fez sua estreia durante uma de suas exposições. O trabalho foi projetado para o público presente. No ambiente de exposição de suas telas, são unidos o cinema e a pintura. A exposição realizada no sobrado Ramalho, em Tiradentes, no ano de 2006, serviu de locação para o trabalho Réquiem de uma musa, que partiu de uma ideia de Fernando Campos a partir de uma poesia composta pelo mesmo.

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