Réquiem de uma Musa

RÉQUIEM DE UMA MUSA, UMA CARTOGRAFIA DE PROCESSOS ARTÍSTICOS

Ora, enquanto se sonha a vida corre sem concessăo alguma. Findo os sonhos sofre-se profundas transformaçőes. O inferno-político torna-se próximo e destruidor. A poesia do pintor Fernando Campos nasce entre a substância enraizada da dor e o esfacelamento do mundo moderno representado pela impossibilidade de se libertar da escravidão. E o máximo onde se pode chegar é na palavra representada com o auxílio precioso de um figurino quase cenográfico de Patrícia Muniz. Figurino-prisăo. Figurino–teia. Figurino sem concessão alguma. O olhar poético sobre a tirania da burocracia torna-se um monólogo furioso de grande efeito cênico.

Luiz Rosemberg Filho

Réquiem de uma Musa é o primeiro curta-metragem onde a palavra é dita. A Musa, interpretada por Cristina Pinheiro, tenta, por meio das artes, se libertar das amarras, do aprisionamento, da tirania e do total abandono, retrato da condição do artista independente no país. O curta teve como origem o poema Cobra, escrito por Fernando Campos.

Réquiem de uma musa

O poema foi recriado no figurino-instalação de Patrícia Muniz, que soube captar com sensibilidade a poesia em sua estrutura e recriá-la em tecidos, transformando o figurino em verso. Verso que cita – por imagens, sobreposições – metáforas, como o pano estilhaçado vermelho, símbolo do amor, ou das luvas que escamam a pele que as veste. O figurino de Patrícia é um poema realizado, composto por diferentes métricas. Se no poema há variação no metro, no poema tecido por Patrícia são as diferentes extensões dos elásticos que compõe o verso em cena.

Réquiem de uma musa

Réquiem de uma Musa possui um prólogo no qual são apresentados os artistas que compuseram a obra. A música inicial é a 20º Sinfonia de Piano, de Beethoven. Nessa introdução percebe-se a dança entre a atriz e a fotografia, realizada em dueto. A câmera desenha formas a partir do gesto do ator e do figurino. Assim como na obra de Fernando, o figurino no quadro cinematográfico é tecido por imagens-tintas, esse conceito é recriado na linguagem audiovisual a partir da integração da dança ao registro das imagens em movimento.

Réquiem de uma Musa

A trilha sonora composta por João Gabriel Herculano rege o ritmo das imagens, dos movimentos, das cordas que parecem tocar o som em alguns instantes, grandes lâminas prateadas que impedem o resgate da musa. O poeta, pela força da metáfora, utiliza-se das artes para tentar transformar os fios brancos em lira, instrumento em que a poética possui domínio. No entanto, pode apenas acompanhar a musa desaparecendo metonimicamente entre as sombras.

Réquiem de uma musa é um curta experimentalíssimo que nos leva a pensar as nossas tantas impossibilidades, indo muito além da culpa. Culpar o outro é fácil. A questão é ir além da culpa, fazendo sempre. E se é verdade que a Arte é uma “perpétua criação de sinais que pertencem a todos”, André, Cristina, Patrícia e Fernando se deixam levar pelo encantamento da delicadeza humana frente ao saber. Saber para ser melhor. Saber viver. Saber ousar e transformar a escuridão do útero apodrecido (o país) em luz e movimento. Réquiem é um exemplo feliz da unificação de forças na fundamentação de um novo espaço cênico para a Poesia.

Luiz Rosemberg Filho

O processo de sonorização e design de som realizado por Marcelo Vidal e Guilherme Barros foi essencial para alcançar a qualidade estética sonora pretendida. A estreia do curta-metragem Réquiem de uma Musa aconteceu nas cidades onde Fernando fez suas primeiras mostras internacionais, no Festival Internacional de Vídeo Independente de Nova Iorque. Foi recebida uma boa crítica, enfocando o trabalho de fotografia, iluminação e montagem, que, conseguindo alcançar uma linguagem poética, soube unificar esses elementos.


Unindo o início do processo pela poesia e sua finalização pela pintura, publicamos aqui o poema Cobra e o quadro criado por Fernando Campos, a partir de uma cena interpretada por Cristina Pinheiro.

Cobra

Olho
Molho os olhos
Molho o molho
So ólho o olho
Mólho, me tolho
Sopro seu solo seco
Me encolho

Planto, rego, não colho
Peço, Rogo perdôo
Choro, juro, distraio, vôo
Filmo, escrevo, pinto ecôo
Espero, reflito, discuto caçôo
Depois acordo, me pego
Aos soluços, aos risos

nos seus  braços de novo
Você enfim declara
Repara
Dispara
Me beija
E eu atordôo
Você despede, volta
Me pede
Me suga
Me segue
Eu corro
Eu tento
Eu côo
Você silva, morde, sua,
Enquanto eu sôo

Fernando Campos

Quadro Réquiem de uma Musa

Uma obra na qual a presença da polifonia artística é constante. Abaixo, a cena do filme que deu origem ao quadro.

Cena Réquiem de uma musa (Cristina Pinheiro)

E para finalizar o poema Réquiem de uma Musa, escrito por André Scucato durante o processo de edição do curta-metragem. Portanto o trabalho possui início em uma poesia de Fernando Campos, cria vida através do figurino-instalação de Patrícia Muniz. É interpretado durante uma exposição de quadros de Fernando Campos em Tiradentes, pela atriz Cristina Pinheiro. Da imagem cinematográfica surge um quadro e por fim, volta-se a poesia, encerrando uma trajetória onde as artes vão se baseando umas nas outras para no seu processo de composição.

Réquiem para uma musa – Há Poesia


Há quem modelou de versos um poema nos gestos a figurar por lâminas de mandrágoras…

Aquém estática escultura rompeu a palavra para emprestá-la em sonatas de movimentos…

E se no enterro do poeta apenas a quimera presente estava em uma aquarela de sofrimento

Há penas, de recitais de lágrima solitária musa em sua boca esculpida do eterno silenciada


Morto o poeta, esqueceram de que sua poesia com cal e terra não se entrega, adubada

Face adunca de personagens vivos, dos teatros dos sonhos, das mensagens de lírios

Mesmo que retiradas as cordas de sua lira e da sua melodia, há penas de martírio

Há luta que nos versos aninham, o figurino de sois-ti-fazer em sombras amantes mútuas


Musa, empresta de sua rima a corda desta lira que hei de fazer este encanto em páginas

De recriar poemadros, dançetos, sonatas, escultrisas, e mesmo deste teu rosto cansado

Arado ao tempo pelos invernos que declamaram seus olhos. Solte o verso que a letra atado,

confinaram os poetas do passado. Que hoje, o poeta morto, é viva a poesia sem palavras.

André Scucato

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